Interrogatório


(poema de 2015)



Quem sou eu quando acordo
Quem sou eu quando levanto
Quem sou eu quando o desespero me
Atormenta dos pés à cabeça e fomenta
Cada minúsculo espaço do meu corpo
Nu?
À beira da cama me perco
Como se jogada na areia do mar
Em destroços de um barco qualquer
No meio do nada
Só me encontro quando fecho os
Olhos e me encho toda de interesses
Para a morte
Em direção à falta de luz eterna
Que os amantes mais devotos do
Universo buscam quando a foice lhes
Tira o bem amado
Mas não me movo por amor
Mas por carícias e vontades
Passageiras e mais rápidas que um
Trem-bala japonês
Que sem fronteiras se guia por
Qualquer pulsão estranha
Que não sabe o que é amor
Nem que trepidação atinge um ser
Quando ele ama
Nem que arrepios dão na espinha até
Dos invertebrados
Nem que brilho nos olhos
Nem que corações tristes
Nem que pedaços quebrados do espelho
Refletem a inexatidão de ser o que se é
Sozinho no mundo
Nem todas as descrições de
Camões para o amor
Porque, se não sei o que é amor,
Não sei quem vive neste corpo e
Nestas mãos com as quais me calo
No meio dos dias e das brigas de
Gente frustrada que acha que sabe
O que quer ser e nunca se
Torna nada mais que a vontade
De se tornar alguma coisa;
Se não sei o que é amor,
Não sei quem vive neste corpo e
Nestas mãos que escrevem qualquer
Palavra que vem não
Sei de onde
(Mas não saber não me perturba
Só me impulsiona
Às vias do destino transtornado
De amarguras como todos os
Passados de todos os seres
Do planeta)
E a minha caneta só
Reflete esta que acorda
Esta que dorme
Esta que vive em
Breves passos de galinha comedida
Em breves passos de quem não
Sabe ser predadora
Somente presa
E em meio a toda confusão
Não sabe ao menos
Quem vive por trás das grades
E é só por isso que a angústia
Existe
E cada minúscula coisa
E cada dedo mindinho
E cada par de meias
E cada molécula aleatória ou
Errada do universo parece
Neblinada
E blindada por suspiros e
Aspirações poéticas e
Mapa astral e tarô e ciganos
Que não roubam como nos clichês
Literários
Talvez porque estejam presos
Talvez porque dissimulados
Talvez por nada o mundo exista
E não se suporte e se destrua
Num eterno retorno sem começo e
Sem fim
Numa espiral transcendente a
Qualquer vidência de aviões caindo
Ou memórias inexatas
Tão certas quanto a última coisa
Que qualquer um acabou de fazer
(Se é que as lembranças guardam
Inutilidades e se é ainda assim que
Elas existem e se guardam
Numa linha do tempo imaginária
Como o trópico de câncer ou o
Ascendente em sagitário)
Se é que lembro quem sou quando acordo
Ou quando deito
Se é que um dia soube mesmo que
Sensação estranha é essa de
Não se aguentar no mesmo
Espaço por cada passo que o
Ponteiro do relógio dá
Por cada quilômetro que um
Corpo anda no relógio enquanto
Existe;
Se é que um dia soube mesmo
Por que ainda assim não há outro corpo
A se querer ocupar:
Talvez amor seja habitar
Dois lugares como num milagre
Da permeabilidade contemporânea
Talvez meu corpo é que habite
O meu espírito
E todas as sensações de amor
Ansiedade ou
Fome coexistam num planeta
Paralelo e disforme que
Se apresente na muriçoca que
Espanto no meio da noite
Tão cheia de raiva
Sedenta por sangue
E todo o mistério com ela se vá
E toda a vida
E todas as explicações
E todos os anseios que eu
Ainda aguardo sentir pra
Nascer de novo;
Vão todos por terra
E mais uma noite se passa
E mais uma vez me levanto
E mais uma vez acordo
Sem saber por quê
Perdida por dentro de mim
Num texto eterno, sem fim,
Que eu nunca escolhi escrever
E com uma coceira na perna esquerda
Que me lembra:
Ainda
Estou
Viva
E o despertador ainda
Não tocou.

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