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Mostrando postagens de junho, 2020

Passado

A morte protege o passado Nunca poderemos perguntar Aos nossos tataratataratataravós Como era o mundo em 1852 Ou mesmo antes de Cristo A língua também nos separa E os nossos tataratataratataravós Sequer nos entenderiam: As questões de hoje Nunca chegarão ao ontem Nem se fossem escritas Pelo avesso Restam somente pegadas De outro tempo Ossos De outro tempo E mistérios eternos Até que alguém os desvende E possa descobrir se nossos Tataratataratataravós Viraram poeira cósmica Ou se ainda fazem crochê Num banco em meio Ao céu.

Imóvel

Eu visitei todos os lugares Que eu deveria visitar Menos os lugares para Onde eu realmente Queria ir Ainda estou aqui, Imóvel.

Nunca ninguém

Um belo rapaz, E tão inteligente, Elas dizem, E dizem também Que nunca ninguém O amou. Que o seu coração Bate forte e rápido, Mas permanece, Ainda, Inabitado.

Fôrma

O mesmo corte; O mesmo emprego; A mesma pasta; A mesma roupa; O mesmo jeito de Ensacar a camisa; O mesmo creme dental; O mesmo aparelho De barbear; A mesma cerveja; Os mesmos amigos; A mesma esposa; A mesma amante; A mesma família; A mesma igreja; O mesmo diamante Que uniu seus avós; O mesmo terno; O mesmo gesto; A mesma fala; O mesmo grave e Eterno tom de voz; O homem Este homem Sai de sua fôrma Da fábrica de homens Normais E vive em direção À morte Mas deixa, antes, Um belo curso Sobre como vencer Sendo você Mesmo Sempre e repetidamente O mesmo.

Eco

Os meus sonhos ecoam Tuas palavras Meu coração é uma caverna Inabitada.

Tempo

Lembro de lugares Onde não estive E talvez nem agora Esteja onde estou Estou mesmo no espaço Das lembranças E portanto é neles Que me finco Vivo perdido no tempo Pêndulo quebrado de Um relógio do século Vinte e um Mas os relógios agora Não têm mais pêndulo Fui danificada até mesmo No que não tem serventia Eu sirvo atualmente Para nada.

Partida II

Às vezes uma Conversa rasa "Sabia que nosso Time vai jogar? Vamos ver a Partida juntos?" Ou "de que cor Pinto a parede?" Evita o desespero Completo Por um momento É possível ser feliz E se ajustar cem por Cento ao banal Às vezes nadar na Borda do redemoinho é O máximo que se pode Fazer para não ser Sugado dos pés À cabeça Os momentos mais Importantes da existência são Absolutamente esdrúxulos E talvez eu teria Desistido de tudo se Você não me mandasse Aquela mensagem tão Despretensiosa às Três da tarde O mal não espera A escuridão E acontece O tempo todo Às nossas vistas Se eu te pedir ajuda Nunca será Sob este nome E talvez a última Coisa que você veja Em mim seja um sorriso Solto e solitário Como o do gato da Alice Não quero incomodar Nem sob partida Sou um problema Do qual eu mesmo Dou conta.

Dor fantasma

Tu eras mais meu do que O meu próprio braço Me foste amputado E, ainda que eu o perca, Eu continuo a sentir Tudo o que aqui deixaste: Um resto De tu.

O mesmo homem

Quantas vezes este quarto já Ouviu teu nome? Estas paredes já estão surdas E não aguentam mais O mesmo homem Quantas vezes este quarto Não guardou teu cheiro? No meu cabelo No travesseiro Quantas vezes viu o teu retrato? E quantas noites já me viu insone? Com o pensamento em ti, No mesmo homem E quantas portas aguentou batidas? O quanto o gesso emoldurou feridas? O quanto me ouviu contigo ao telefone? Quantas vezes não ouviu minhas crônicas? Quantos poemas meus já não conhece? Com as mesmas tônicas As mesmas preces Quantas pisadas bruscas apressadas Não sentiu do meu pé? E quantas vezes já perdeu a fé? Eu não sei quantas Mas foram muitas Muitas as vezes Em que este quarto ouviu Teu nome E serão muitas Muitas mais vezes As que ele não ouvirá Pois este é o último dos Meus escritos E eu já não lembro mais sobre Quem falo.