Chiaroscuro




          Luz. Um dia a recebi como quem recebe barras de ouro e não sabe o que isso é. Um dia eu quis ser luz pura, brilhante como o sol que ofusca e para o qual se insiste em olhar. Mas sempre me guiei pelos opostos – a escuridão e seus mistérios e medos e torrentes assustadas do desconhecido sempre me atraíram mais. Um dia, alguém me deu à luz. E o sol se revolta há alguns anos e eu me vejo um pouco diferente um pouco mais magra um pouco mais estranha mais incoerente mais menos de algumas coisas mais de mim, ainda que eu não saiba o que isso quer dizer. Menos humana. Mais animal. Eternamente nessa divisa esquisita que vem do pensamento por ser humana e dele vai embora ao mínimo sinal de ira por ser animal. Um pouco mais perdida. Dissimulada. Com olhos de ressaca de quem não bebe há dois anos. O cansaço natural de ser o que se é todos os dias. Sem intervalos. O rastro perdido dos próprios pés sem direção certa. Que às vezes finge. Às vezes sabe bem para onde vai. Depois, não sabe mais. Pode acontecer tudo. Tudo pode. Inclusive nada.
          Pés com medos tremendos. Com medos absurdos ou, melhor, absurdos por si só. Um medo ambulante e meio cego que se enfia nos buracos de escuridão que encontra. Que diferença faz ser cego em meio à escuridão? Degrau por degrau. Ano após ano. Dia após dia. Manhã após manhã. Sonecas e despertadores e pedidos e urgências e gritos e choros e calma e vai passar e passa mesmo e um desespero profundo, porque há certo prazer na dor mais sincera que existe. Sentir dói um pouquinho. Ser dói um pouco. Estar dói mais. É impossível ser e estar os dois. Estar sozinho é uma mentira – somos sós, e isso é perene. Somos sol, também. Somos luz. E escuridão. E se perder e se encontrar e entender que tudo isso é uma ilusão gigante. Que não é possível se perder. Nem se encontrar. Nem se... nada. Boas falácias vendem livros, e só isso. Talvez haja um ponto no infinito que se repete até formar um círculo ou um ouroboro ou um eterno repetir-se apenas. Até entender o que se é. Até dar a volta nos mesmos pontos e se olhar e ver que círculo bonito um só ponto cria e que isso não divide nada. Que dentro do ponto e fora do ponto somos os mesmos. Que estamos sempre ali. No mesmo lugar. Dando voltas, ansiosos. Desejando sermos mais humanos do que somos e sendo ainda mais incoerentes enquanto o sol se revolta. Luz na escuridão.
          Um dia alguém me deu à luz. Talvez não possa olhá-la porque, como todos os pontos do mundo, estou sozinha. E não me vejo. E o espelho não me reflete. Nem eu reflito sobre mim. Minha própria luz me cega como o sol que... então, não insisto. Aceito que a tenho. Sigo. Caminho comigo como uma boa amiga que se entende e às vezes tem raiva de si e tudo bem: essa é a vida. Eu e minha solidão. Eu e todas as outras solidões dos outros que fingem que sabem para onde os pés irão. Eu não finjo. Eu não sei. Tudo que sei é que é meu aniversário e estou sozinha. E sempre estarei. Eu e meu infinito inteiro. Perdidos no espaço. Revoltados numa galáxia de perigos iminentes. Viver é um risco absurdo. Um risco de giz, quase um ponto no quadro branco iluminado pela tubular do teto que insiste em me dizer que as coisas mais óbvias estão nos lugares mais vulgares. E que eu estou aqui, exatamente onde deveria estar. Iluminada pelas minhas próprias trevas. Despida. Incalculável. Cega. Sempre. Sempre. E sempre mais. Tenho um vácuo, e ele é só meu. Fui presenteada com o nada. Assim, fico mais leve. Mais eu. Ano após ano. Postergando a eternidade.

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