A hora
Todo
começo é um pouco doloroso. Todo começo rompe barreiras e quebra oceanos de
moinhos silenciosos. Estive pensando que o tempo existe, sim, diferentemente do
que pensava antes. O tempo estava consolidado na destruição do corpo. Eu o vi.
Eu o vi e só pensei, meu deus, aquele é ele. Ou foi ele. Todas as veias que
circulavam um sangue, todas as articulações que mexiam ao correr, todos os
apertos de mãos; o tempo terminou com todos, a tudo destruiu sem piedade alguma.
O que sobrou é tão sutil quanto fumaça; ataca no meio de noites sozinhas ou nas
tardes sem motivo para existir. Assim, no meio do nada, a saudade aperta e não se
sabe do que ela se lembra. O cheiro do mar que não existe dói um pouquinho e
chama com urgência alguém que eu nunca fui.
Talvez
seja o eclipse. Não sei se tenho ligações cósmicas com a lua, se é ela quem me
obriga a me manter acordada enquanto iluminar as sombras dos outros – porque a
minha, ela não ilumina. Eu não me permito à luz. Eu me fecho como uma madressilva
a almejar a dama da noite. Todas as dores que eu sinto se entrelaçam como num
ninho de passarinhos que ainda não sabem bem como viver. Todo começo é um pouco
doloroso. E eu me sinto mais como um ponto do que como um parágrafo. Estou
sempre a encerrar coisa qualquer que insista em romper alguma outra coisa
qualquer. Estou sempre a fugir. Não me encontro de propósito, apesar de isto
parecer uma desculpa esfarrapada de quem nem sabe o que significa encontro,
hora marcada. Não tenho hora marcada comigo. Não respeito os ponteiros, não me
respeito, não peço nada e tudo recebo. Não me sinto digna. Não me sinto. O que
já senti se congelou num espaço vazio onde deveria estar um coração, que eu
comi, com muita fome de sentir qualquer coisa. De romper barreiras. De gritar
dentro de um moinho; de girar sem fim até parar em algum lugar; de querer que a
vida me escolhesse, e não o contrário.
Tudo
o que sinto é um pouco oco, congelado. Sem nexo. Sem ordem. Sem propriedades
divinas. Sem juízo. Sem desvios. Sem caminhos. Tudo o que sinto vira um pouco
de nada dentro de mim. Sou uma mulher repleta de vazios, me acostumei à
imensidão do mundo, a não conhecê-lo e a me perder dentro do que disseram ser
eu. Às vezes penso se não me dão remédios para desmiolar de vez; se não me
fazem acreditar neste universo inteiro. Não sei. Morrerei sem saber. Suspeito
mais das coisas quando fazem sentido do que quando não fazem. Nasci para
esperar o erro. E espero o erro. E o espero com ares de condolência, a condolência
exata de quem aguarda à porta e não sabe que a morte ali mesmo já bateu. Há
poucos minutos. Há pouco tempo... o tempo que eu achava não existir e hoje me prova
que sim e diz que não tenho bom gosto e dói e diz eu estou aqui querida. Porque
errar é morrer um pouquinho. Esperar é morrer também. Talvez só o beijo faça
algo renascer entre todas as coisas mortas. Talvez o amor o faça. O perdão. O
eclesiástico. O divino. O pecado, em si. Talvez só o beijo na fruta apodrecida
faça renascer o fruto ainda verde. Talvez o tempo mova as cinzas ao seu favor.
E eu espero estar ao seu lado quando a hora chegar. Enquanto espero. Enquanto
erro. Enquanto morro um pouco. Todos os dias. Em todos os seus começos e bocejos
e compras de pães e despertadores. Em toda sua metódica rotina construída pelo
tempo. O senhor dos saberes. Esta coisa estranha que faz meu relógio se mexer
sozinho e provoca os medievos a pensarem que bruxaria. Esta coisa estranha que
envelhece fotos. Que apaga a beleza. Que tira vidas. Que dá vidas.
O
tempo talvez seja deus. E talvez eu finalmente acredite nele. Mas isso não
importa. Em breve, não lembrarei de nada. E toda a memória, toda a digital do
tempo terá ido embora. E ele, como tudo que um dia nasceu no universo, também
irá embora. Então as cinzas voarão, em paz, sem rumo certo. Sem recomeços. Sem
dor. Num silêncio que não desespera. Num vento que não machuca; que abraça. Num
apocalipse piedoso. Dentro de mim, as coisas continuarão sufocadas; e eu
continuarei a tudo terminar, sem nem mesmo ter algo começado. Senhora do meu tempo.
Desregulada. Girando, girando ao redor do nada. Sozinha comigo e com meu
barulho ao redor dos dias, em meio aos crimes e às santidades: tic tac, tic tac,
tic tac. Intacta. A mesma desde antes de nascer. Substituída por um modelo novo
e batendo exatamente do mesmo jeito. Sem corações. Somente o som do tempo
ecoará. Sinistro e silenciosamente. Sinfonicamente indetectável. Tic tac. Tic tac.
Num ciclo eterno e sem fim. Sempre correndo. Sempre retornando. E ainda assim
voltando a ir embora.
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