A caixa: entre o medo e a vontade.


Regina olhava uma caixa, de longe, tentando imaginar o que teria dentro. Podia ter um pinto mal saído da galinha, uma bolsa Chanel. Regina era dada a pensamentos desprovidos de noção. Talvez houvesse mesmo o pinto. Lembrou da galinha que seu pai matara, há tantos anos, mas o sangue escorrendo nas mãos do pai, mesma genética que a sua, pai seu, dono dela, o sangue escorrendo vivia naquela cabeça castanha de Regina. De primeira, sentiu pena da galinha depenada. Com a sequência de mata-mata, a comiseração morreu também. Era normal matar uma galinha, mas ela não tentaria - talvez houvesse uma peninha, perdida naquela imensidão que já era Regina, aos 9 anos. Continuava sem saber o que havia na caixa. Sempre quis Chanel, mas o pai, o mesmo que matara a galinha, não era próximo às futilidades de menina, que a filha queria. Mãe, não tinha. Tinha, é claro que tinha, todo mundo tem mãe. Da mesma forma, Regina perdeu sua única saia que ainda passava pelo bumbum, mas nunca deixaria de possuir aquela roupa. Bumbum grande, o dela. Esse mesmo atraía atenção nas ruas - o que era lamentado por sua dona, que tinha cérebro, e temia que esquecessem disso.

Às vezes achava que, como castigo, na próxima reencarnação nasceria galinha. E seria morta. Nem em reencarnação acreditava - talvez houvesse uma crença, perdida naquela imensidão que era Regina, aos 20. Num desses dias em que chamava atenção, um único homem não a olhara. Esse morava na rua, vestia roupas rasgadas - quando vestia. Com estranheza, ela se indagava o porquê de não ter sido olhada. Primeiro, "aquele homem não podia desejar o que não teria". Sentiu-se horrível pelo pensamento, logo trocou por "sente mais fome de pão, que de mulher". Depois notou sua presunção: detestava que a olhassem, mas tanto precisava. Não era só estranhamento, mas tristeza por não conseguir unanimidade. Logo ela, que detestava gente assim. Assim, que quer tudo de uma vez. Ela, que se achava desprovida de ambição. E a caixa fechada. Não devia haver algo lá dentro. Na escola, um de seus professores dizia, "É impossível que não haja algo num espaço. Há, no mínimo, ar". De química, não era. Era de artes. E só nisso ela ia bem. Até simpatizava com números, mas não os aguentava por muito tempo. Igualmente à falta de paciência nas igrejas. Seu pai - o da galinha, o da falta de Chanel - a levava, todos os domingos. Em sua cabeça de criança, aquilo não servia para nada. Latim, não entendia. Mas era um exercício de paciência - coisa que, hoje, existia em grande quantidade. E a caixa fechada - só a caixa, pois Regina notou que se abria, sozinha, sem que ninguém ouvisse seus pensamentos. Regina ia da galinha morta à igreja, sem dar um passo sequer. Se houvesse um pinto, uma bolsa, um nada, já não tinha importância, porque dentro de Regina havia tudo. Então lembrou dos sapatos pretos, do seu pai - aquele da galinha, da falta de Chanel, da igreja -, limpos e brilhantes, que ele usava para... Regina dormiu. E a caixa fechada.

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