Burn.

Olhou para a esquerda, estava lá. Prateado, da festa rosa, disseram que era lembrança. Era um coração de mesa, murchinho. A lembrança estava murchando. Perdeu o brilho. Foi à cozinha - a bunda doía, sentada há horas na mesma posição - enrolada no lençol verde, lendo. Olhou pra cima, encostou as mãos no fogão. Queimou. Continuou queimando. Ela sentia, queimava, e ela não tirava. Deixa queimar. Deixa que queime e que se perca a mão. Gritavam, "sua mão pega fogo, saia daí!". Ela ouvia. Queimava. Doía. O bumbum dormente, as mãos queimando, o coração totalmente sozinho. Tem coisa que não muda. Doía. Parada, séria, compenetrada, boca fechada, dentes guardados, olhos abertos - nem tanto. O fogo - que não era azul, mas amarelo - a destruía quase inteira. Deveria queimar só as mãos, mas invadiu. Queimavam suas pelúcias, suas bonecas, sua maquiagem, o telefone que nem sabia mais o que era gancho, o tapete fora do lugar, o quadro mais para a direita do que para a esquerda, as fotos. Fogo desordenado queimava o que ela construiu, o que construía ela. Parada. Queimava, doía, flamejava, ardia. O chaveiro de três anos atrás, a lista do dia anterior, a caneta sem tinta, o carimbo, a cadeira caída no chão. Queimava. Queimava o primeiro namorado, o primeiro dia de aula, o último, a última vez em que chorou, a primeira conta que pagou sozinha, o sorriso mais bonito que já viu, os dentes meio tortos sendo escondidos, a maneira com que as pernas se moviam. Queimava. O segundo perfume, os rabiscos daquele dia, as folhas da janela, um pedaço de unha no chão, a cerâmica desigual, o xadrez das paredes. Queimava. Chorava - as lágrimas queimavam. Mas era única. Queimava a espectadora protagonista. E não doía mais.

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