Aperta.

Eu falava e saíam pássaros da minha boca, aquele lugar todo saía da minha boca. A vizinha e as filhas saindo cedinho, o cheiro de flor do jardim, as ruas que a gente tinha que atravessar pra ir à praia, o barulho dos grilos, o cheiro da carne do churrasco do domingo, aquilo tudo saía da minha boca e vivia. E eu vivia de novo, enquanto minha boca se alargava pra dar espaço a tudo, eu vivia de novo, eu voltava nos anos e vivia, só isso. Era eu vivendo, mais nada. Não há coisa mais simples do que só viver. A vida me tomou pela cintura e não largou, me faz dançar até chorando, mas não largou. E eu não queria largar. Até já quis, quando aquela mão-de-vida segurava forte demais, parecia que ia me derrubar, e de propósito, vê, de propósito a vida ia me derrubar, e eu sentia raiva dela e queria me soltar e mandar aquela música pra o quinto de outros infernos, que eu já estava no meu. Mas ela não deixava. E eu mudava de idéia. Acabei me acostumando a brigar com a vida, mas, sabe, eu gosto dela. Eu a amo. Minha boca tomava o tamanho de tudo o que eu contava, e a mão apertava mais forte e não me deixava sair, e eu dançava, e girava, e cantava. Viver o velho de novo e feliz e dançando e deixando as pessoas em vultos tão rápidos como uma câmera sem foco. Mas eu tinha foco, meu foco era viver, eu olhava nos olhos e dançava. Eu não planejava mais nada, eu não queria mais nada, só deixar a mão segurar como quisesse. A vida não era minha: eu era da vida. E não me importaram as dores, as facas, os gritos, nem mesmo os gritos me importavam. A mão segurava forte e eu gostava, eu gostava e pedia mais forte, que eu aguentava. Então tá tudo bem, e apertou. Apertou e eu vi que era fraca. Eu era fraca e estava dançando tudo errado. Minha boca diminuía e eu ficava pequena. Eu ficava tão pequena, eu virava pó. A mão me soltou. Mas aquela mão me pegou de novo, me pegou de novo e ainda mais forte. Eu não pude fazer nada, só olhei em seus olhos e disse: aperta. E minha boca tomou o tamanho da vida.

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