Ela.

"Cadê, querido? Cadê tudo aquilo que a gente prometeu? Cadê? Queria que você me mostrasse." Pensou. E teve medo, medo dela, dos pensamentos dela, das decisões dela, de ser tão descontrolavelmente-ela-mesma. Ela sangrava, ela se derramava em sangue, o que saía dela era do mais profundo que se poderia ir. Era quase petróleo. Se pudesse, arrancaria seu coração e o mostraria para qualquer um que cruzasse a mesma rua que a sua. Nas suas veias, tinha vida, vida desde que nasceu, vida contínua. Mas quase ninguém arrancava o próprio coração, todo mundo diz que dói. Às vezes, ela achava que queriam esfaquiá-lo, destruir, fazer qualquer coisa ruim com isso. Mas ela tinha faca, também. E dói mais esquecer que se tem um. "Fica vazio, e a gente sente quando está vazio, porque a gente não sente nada. Isso dói mais. A gente sempre..." pensou. Pensou como uma criança de dez anos, em trabalho escolar. E detestava seu perfeccionismo, de pensar com vírgulas e pausas. Mas isso era seu, totalmente-por-inteiro-do-início-ao-fim-seu. Sozinha, ela se divertia roubando-se. Ela roubava seus livros, seus filmes, sua vida. Se desse errado, ela não havia feito nada: foi a ladra. Aquela ladra maldita. Aquela ladra que a roubava de si mesma, em si mesma, ensimesma, e não deixava nada do mesmo jeito. A ladra arrumava tudo: olha só! A ladra deixava do jeitinho que ela gostava. Ela se roubava e ia à praia. Ela se roubava e corria. Ela se roubava e amava. Ela se roubava e sorria. Ela se roubava e roubava as almas dos outros, e voltava tão cheia de mundo. Ela tinha um vestido florido, desses que todo personagem tem que ter. E ela girava em flores, deixava tudo borrado, como a foto de uma luz. Mas a gente sabe que é luz, e a gente sabe que é vestido. E se vestia, em flores, e deixava que caíssem as pétalas. E floria, e renascia, e crescia, tanto "e", tanto "ia", que acabou ficando. E ficou, florida, brilhante, viva, roubada, tão-ela-mesma-que-doía. E ela adorava que doesse.

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