Pensamentos soltos


Que dor perder um pensamento. Gosto tanto do mundo e das pessoas, que sinto que sou todas ao mesmo tempo e, quando um pensamento se vai, uma parte de alguma pessoa de mim vai embora também. Que dor partir. Que dor chegar com a sensação de estar indo embora (ou de que tudo foi embora antes de si). Mas partir também é chegar: “a partir de agora”, só falarei do que interessa: dos fatos concretos, dos lugares em que a concretude se constrói. Os lugares têm história: eu sorria ali um dia desses, e agora minha vontade é de chorar. Mas, antes da minha história, há a história da história do lugar, e ela me afeta sem querer, mesmo que eu não a conheça. O vaso vitoriano me dá paz. E quero comprar camafeus e echarpes verdes e me sentir o vaso. O vaso vive em mim, e eu não carrego flores. Eu não sei carregar flores, não tenho a doçura da imagem, nem a fortaleza da terra. Tenho só o pranto iluminado que cai do céu e frutifica. Meus frutos são estes. Estes invisíveis e sem nome, inúteis. Mas frutos. Tenho que parar, quero escrever natural e não consigo. Na verdade, consigo, mas não gosto da minha naturalidade. Esta sou eu. Nem sempre gosto do que vejo – então, não vejo. Paro de olhar. E me transformo ou me formo noutra imagem qualquer – escolhida a dedo pela história de quem sou (que eu não conheço: nem eu, nem a história, mas isso é concretude) –, como um vaso, e adentro num universo estranho de galáxias sem brilho.
Admiro a imprevisibilidade  e a mutação do tempo, apesar de odiá-las. Quem diria que aquela-eu que acordou hoje escreveria agora sobre nada – essa é a grande surpresa do meu dia, então acho que vivo para dentro. Não subi montanhas, nem corri a rua, nem ajudei cegos. Sento e escrevo e as coisas se abrem pra mim, as flores se abrem pra mim, e eu sinto uma dor inexplicável. Vivo sempre com vontade de chorar e me proíbo, sou minha lei. Quando rio muito, minhas barriga dói como punição. E soo falsa. E penso que tudo que é sempre falso se torna lei e aí a verdade nasce; às vezes, da oposição; da mentira; do oculto; deus surgiu das trevas, e é por isso que não o vejo. O invisível não pode ser oposto à escuridão, isso é uma mentira que todos contam sei lá por quê. Eu não sei de muitas coisas, mas sinto tantas e me estranho, porque não sei quem sou e não sei quem sente o quê. Quanta besteira. De tantas besteiras é feito o mundo.
No entanto, num quase exato minuto atrás, me senti menos boba. Sempre acho as discussões em que me meto, mesmo calada, cinquenta por cento bobas. Há os cinquenta morais, os cinquenta “isso se discute porque é importante, aceite”, que são naturalmente falsos. Acho a discussão da estética tola, a discussão literária tola, a discussão cinematográfica tola. Não acredito no mundo. Mas saio e me pergunto coisas ainda mais tolas e vejo que sou tola. Que não posso me levar a sério. Então sorrio com vontade de chorar e perco toda a inspiração que um dia achei ter – que me provou existir por dar linhas a mais que o normal num fluxo antigo que eu revisito. No fim, a vida é tola e eu gosto dela. E escrevo como criança, com frases diretas, porque sou perturbada e me juram ser adulta e eu não me meço, e só amo vasos, e só penso em flores, e choro, e choro de novo quando perco o que pensei, e penso mais uma vez, sempre, que sou maior do que aparento, e acho que tudo que perdi ainda está aqui, não sei onde, e ainda pode aparecer em outra forma ou apodrecer sem dizer a ninguém. Sou só uma criança ultrapassada e uma idosa adiantada maior do que aparento; sem lugar fixo, porque voa sem asas e se esborracha e entende que metáfora nenhuma expressa o nó que se tem por dentro dessa garganta engravatada.
Minha tristeza é só minha, eu tomo posse, eu deixo as musas me guiarem com uma importância que eu mesma me dou na ingenuidade dos momentos. Sou sólida, mas desmancho no meio do nada. E sumo. No invisível. Nas trevas. E só existo quando fecho os olhos. Quando o dia nasce, quando acordar me dói tanto, quando parece que morro, que me expulsam com raiva de um ventre apertado. Que parto. Que dor partir. Que dor fazer o que não se sabe. Que dor aprender e saber que tudo um dia virará hábito. Que a dor é um hábito que se veste e com o qual se ora para que a hora passe mais rápida e a dor desapareça. Vestir é esconder um corpo e mostrar o que se é verdadeiramente – o luto do preto ou o amor do vermelho. Ou a aleatoriedade de se escolher qualquer cor e não estar nem aí para nada. A indiferença, o desprezo. O não querer mais nada além do que se quer: pensar sem correr riscos, sem tanto medo, perdendo pensamentos e o que mais tiver que se perder. Perder-se e não querer achar; não deixar nada por trás; ser transparente; nua. Com a pureza e a doçura de quem carrega flores e de quem morre com as mesmas flores que um dia carregou.

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