-

Jogada, cabelos no rosto, visão embaçada. Ela estava jogada em um canto da calçada, da rua deserta, mas cheia de gente. Ninguém se importava. Ela, jogada, cabelos no rosto, visão embaçada, parada como uma criança que olha o sol nascer pela primeira vez: ninguém se importava. Ninguém se perguntava "por que há uma mulher jogada no chão?", porque ninguém a via. As pessoas passavam lentamente, como um filme que foca no protagonista, como quem corre e deixa um vulto a cada passo: era sua visão ou imaginação? Ela não sabia lidar com aquilo. Homem com um braço na janela de um carro vermelho, óculos escuro e sorriso aberto. Criança com urso nas mãos, falando "sozinha", agarrada à mão da mãe. Mãe com blusa preta, saia vermelha, saltos-não-feitos-para-ela, andando rápido pela calçada esburacada. Filha seguindo, com urso na mão. Filha correndo, conversa com urso, olha para urso, não olha mais nada. Mãe olha para tudo. Ele, rua da frente, blusa azul listrada, cigarro na mão direita, relógio no braço esquerdo, andando devagar, pensando em tudo. Mãe não sabia que o pai seria ele. Sua filha viveria para urso, como ela viveria para ele. Mãe não sabia que, um dia, não seria apenas mulher: seria mãe. Filha, com urso, ainda não havia chegado. Jogada no chão, ela via. E continuava jogada na rua. Ela estava na história certa? Vendo a vida passar em carro vermelho, salto em rua esburacada, homem fumando. "Mas eu não quero ser mulher que anda com sapatos errados. Quero ser mulher que cruza a rua" Pensou. E entrou na própria história. Tirou os sapatos, pisou descalça no chão, aceitou os buracos e, com saia vermelha, correu para a rua da frente. Conheceu o homem de blusa listrada e pegou sua filha na mão. Afinal, sua história não poderia começar e terminar com uma mulher jogada no chão.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

A noite

Só.

Duas às nove.